
Os participantes da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) cobraram, na última quinta-feira (30), mais empenho das autoridades brasileiras no apoio às famílias de dois mineiros vítimas de tráfico humano no Camboja. O debate foi solicitado pela deputada Bella Gonçalves (Psol), presidente da comissão.
Os dois casos, embora distintos, compartilham a mesma origem: a promessa de uma oportunidade de trabalho no exterior que terminou em tragédia. O técnico de informática Gabriel Oliveira de Araújo Vieira, de 24 anos, natural de Igarapé, morreu em julho, em circunstâncias ainda não esclarecidas. Já a arquiteta Daniela Marys Costa Oliveira, de 35 anos, de Belo Horizonte, está presa desde março, acusada de uso e tráfico de drogas após se recusar a colaborar com uma quadrilha internacional especializada em golpes cibernéticos.
Familiares cobram repatriação e justiça
Na audiência, os familiares fizeram relatos comoventes. Os pais de Gabriel, Daniel e Leniêr Vieira, reforçaram o apelo pela repatriação do corpo do jovem. “Estamos exaustos, mas não vamos desistir. Onde o amor reside, o corpo deve descansar”, disse Leniêr, emocionada.
Segundo o pai, o último contato do filho com a família foi no dia 4 de julho, por chamada de vídeo. “Ele parecia cansado, mas sempre tentava nos tranquilizar”, contou. Poucos dias depois, em 15 de julho, a família recebeu a notícia da morte. “Prometeram exame de DNA e coleta de digitais, mas até hoje não tivemos confirmação. Queremos apenas dar uma despedida digna ao nosso filho”, lamentou.
O Ministério das Relações Exteriores reconheceu que todos os requisitos previstos no Decreto Federal 12.535/2024, que regulamenta a repatriação de brasileiros mortos no exterior em casos de tráfico humano, foram cumpridos, mas alegou falta de dotação orçamentária para o traslado.
Prisão de Daniela é denunciada como ilegal
A cunhada de Daniela, Ana Flávia Silva Alves Pereira, denunciou a prisão como ilegal e alertou para o risco de vida da arquiteta. “A Daniela é um arquivo vivo do tráfico internacional de pessoas. Sabe quem são os aliciadores e como agem. Ela precisa ser salva”, disse.
Ana relatou que Daniela embarcou em janeiro após receber proposta para atuar como tradutora em telemarketing. “Chegando lá, foi levada para um alojamento no meio do nada, teve o passaporte retido e passou a ser vigiada. Quando se recusou a aplicar golpes, forjaram um flagrante de drogas”, afirmou.
Segundo o relato, Daniela divide cela com mais de 100 mulheres, tem acesso limitado a água e alimentação e depende de ajuda financeira constante da família. “Tudo lá é pago: comida, água, até o direito de ligar. Ela ainda está com a mesma roupa da prisão”, acrescentou Ana Flávia.
A próxima audiência judicial de Daniela no Camboja está marcada para 12 de novembro. O Itamaraty enviou recentemente um advogado e um tradutor para acompanhá-la.
Autoridades admitem limitações

Representantes do governo federal participaram remotamente da audiência. Marina Bernardes de Almeida, coordenadora de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça, e Ana Maria Gomes Raietparvar, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, afirmaram que as ações estão limitadas à competência orçamentária do Itamaraty, que não enviou representantes.
A deputada Bella Gonçalves criticou a falta de respostas concretas. “O Estado brasileiro tem culpa por não prevenir e reprimir o assédio a esses jovens e por não cumprir um decreto que veio tardiamente. As famílias não precisam se envergonhar por pedir ajuda”, afirmou.
Golpe começa com promessa de emprego
Segundo relatos, o aliciamento segue um padrão: ofertas de emprego em tecnologia ou telemarketing no Sudeste Asiático, feitas em inglês nas redes sociais, com promessas de salário em dólar, moradia e alimentação. As vítimas acreditam estar indo para a Tailândia, mas acabam levadas para áreas remotas do Camboja, onde são forçadas a aplicar golpes e recrutar novos brasileiros.
A advogada da Clínica de Trabalho Escravo da UFMG, Shevah Ahavat, lembrou que o Brasil é signatário da Convenção 29 da OIT e do Protocolo de Palermo, tratados internacionais que obrigam o país a combater o tráfico humano. “Essas pessoas são vítimas, e não criminosas. O Estado brasileiro precisa atuar com urgência”, destacou.
O delegado Gilson Rodrigues Rosa, da Polícia Civil de Minas Gerais, sugeriu que a Polícia Federal realize entrevistas preventivas com brasileiros que viajam ao exterior, para identificar possíveis situações de aliciamento.
Enquanto o corpo de Gabriel ainda aguarda repatriação e Daniela segue encarcerada, a audiência na ALMG reforçou um alerta: o sonho de uma vida melhor tem se tornado, para muitos brasileiros, o ponto de partida para um pesadelo em países onde a promessa de oportunidade esconde a face cruel do tráfico internacional de pessoas.



